Manoel Cardoso dos Santos Júnior. Esse era o nome do corpo estirado no chão. Coberto por uma folha de papelão, deixou um pé da sandália pra trás. Estava de bruços, dormindo gostosamente sem travesseiro. Milhões de cones e luzes vermelhas, nenhuma novidade.
Três dias antes havia saído a notícia de uma criança atropelada. Tava correndo atrás de pipa. A culpa é das férias, oras. Onde já se viu soltar pipa na rodovia? Mas o Manoel eu não sei não. Talvez o jornal diga que ele tava puto da vida e resolveu se matar. Talvez o motorista estivesse bêbado, mas é bem improvável; era uma rodovia. Rodovia é pra carro, não é? Então Manoel não tinha carro. É... porque se Manoel tivesse carro, ele teria sido o acusado por homicídio culposo. Manoel era negro, devia ser trabalhador. Ou era um vagabundo, drogado, bêbado. Se jogou no mar do asfalto e só. Quem liga? Rodovia é pra carro, não pra gente. Azar o dele. O jornalista vai pensar ‘mas que ideia, atravessar a rodovia à noite? Bicho burro!’.
E Manoel não tinha carro. Às vezes, ele se revoltou porque não tinha carro e resolveu causar problemas sérios a um infeliz motorista de classe média dessa cidade feita de rodovias; feita pra carros. Feita pra quem tem carros. Minuciosamente planejada. Mas, quem liga? Quando viu o papelão, nem você ligou. Achou que era qualquer coisa sem importância. E não é? Quando virou a cabeça pra tentar matar toda sua curiosidade e viu o policial levantando a folha de papelão, você pensou ‘mas que ideia, atravessar a rodovia à noite? (apesar de saber que o soltador de pipas morreu à luz do dia) Bicho burro!’.
Se o nome do corpo era Manoel Cardoso dos Santos Júnior, eu não sei. Se era trabalhador ou vagabundo, você também não sabe. Se ele queria, enfim, deixar a sandália pra trás ou foi a maior cagada da sua vida (ou morte, sei lá, tô confusa), a gente só vai descobrir amanhã.
(Mas que a biografia do Manoel não vai passar no Jornal da Globo, todos sabemos)
uma história bastante interessante. gostei de todo esse pensar ao redor de uma morte na rodovia.
ResponderExcluirninguém sabe quem morreu e nem porquê, e, talvez, ninguém dê a mínima para isso.
gostei do seu blog. ^^